Beta tinha terror; umha espécie de “síndrome do canil” (de nele estar fechada desde quase o nascimento), que a fazia viver em pânico e dar voltas sem parar; e não continha as suas necessidades fisiológicas.
Rejeitava cuidados e carícias. Mas convivia bem com o resto dos animais da família.
Morreu no mesmo dia que o seu querido Papaventos, companheiro de canil, que estava adotado por outra família.
Duvidamos que adotá-la fosse a melhor solução; mas fizemo-lo: o canil estava mais do que saturado e ela estava ali passando mal. Conosco correu, brincou, viveu mas nunca abandonou a sua inquietação e a sua tristeza. Foi-se em paz mas deixou-nos um pouso complexo de tristezas e raivas a nós, ainda que de algum conforto.
Manuel Jordán gostaria de tê-la conhecido, porque compreende mui bem a humildade.
Nota: Como todos estes poemas, salvo comentário em contrário, este foi escrito em plena vida de Beta.
Beta,
Minha mão leva a forma dos teus ossos depois da última carícia.
Por onde anda a tristeza, Betúncula, que tanto nos impede?
Vamos um dia atrás dela, Betinha, a dizer-lhe que já não.
Beta, com a tua concha ao pescoço e os teus olhos de concha
Esmaltes abaixo das orelhas alerta
E a humildade de andar à procura e à fugida.
(Beta, donde venhem os teus olhos esmaltados,
Que remontam rios num relanço além das terras da genética?)
Beta, por que saberás tanto?
Por que sabes da nossa crueldade
E portas a sabedoria de um lavrador antigo diante de um cacique renovado?
Beta, minha Betinha,
Desculpa as perguntas limitadas da condição humana;
Desculpa-as não polo que perguntam mas por existirem
Amortecemos assim a incompreensão e a insuficiência
E julgamos que perguntar nos informa de ti
Ou nos redime de algo
Perguntar-che quer ser uma forma de amor humano
De tentar saber se estamos no certo
De tentar saber o que sempre desconheceremos.
Mas Beta, coração nosso,
Sabe ao menos que queremos viajar em todas as tuas aventuras no assento que nos deres
Que agradecemos o espaço da carícia
e que respondemos ao teu latido
com a gratitude dumha certeza,
de que pintamos, mesmo que seja à branco e preto,
estrelas, planetas ou meteóritos,
no universo da tua vida inimitável
II
Beta, meu carinho,
Quando seja noite e passe Coco a ver o panorama,
Cumprimenta-o e deixa-lhe um pouco da tua água
Para reforçar-lhe essa vaidadinha que tanto nos faz rir
E ao pirata Matéu que beba aquela água quando tu deixares
E berra-lhe se anda a pola comida tua, Betúncula!
Consente as cavalinhas da Júlia, o olhar da Mámi, assim somos tão lindamente ridículos,
E deixa Pápi contar as tuas pesadas aventuras que a tua bondade nunca lhe desmentiu.
E, quando Zoa queira ir à frente, e, aduladora, subir ao sofá,
Olha com esse olhar teu condescendente, torce um pouco a cabeça à direita,
Orelhas ergueitas,
Olhos compreensivos,
Sentada ao pé do móvel sobre a alcatifa
Deixa-a estar
E ameaça a todas com uma nova mexada,
Que saibam das tuas armas presentes,
E dá-nos esse gesto único em que decidiste
Ficar a compartir connosco o teu caminho
Naquela primavera que foi bela
Por aquele dia em que
Depois de tanto andar
sentaste ao lado da Júlia,
Incorporaste a sua mão ao teu lombo
E mansamente certificaste que
Afinal
Nos aceitavas como a tua família