Quando o sociólogo índio Swaminathan, comissionado da UNESCO para o Programa “Children’s Place” (CPP), o “Lugar dos rapazes e das raparigas”, chegou a Tui, verdadeiramente alucinou. Nos informes com que trabalhara sobre esta pequena cidade havia declarações sumárias do privilegiado lugar; mas na sua longa experiência, estava habituado a verificar que as povoações que se candidatavam àquela magnífica distinção, a de conformar um habitaturbano ou vilego em que meninhas e meninhos podiam brincar e jogar livremente, num espaço cuidado e variado em que eram protagonistas, na prática, eram menos da metade do que prometiam. Tui, não. Conhecia através de fotografias de satélite, planos, fotos, vídeos os diversos atrativos que se propunham; mas quando sobrevoou no helicóptero a zona, olhando aquele monte incrível, Aloia de nome, o majestoso rio Minho e o seu bairro do Arrabal e O Penedo, a extensíssima parte antiga com a catedral no centro e aquele passeio extremamente singular que chamavam a Corredeira, anotou no seu diário as palavras brilliant, amazing, incredible seguidas de cinco signos de admiração cada umha. O piloto olhou de esguelho a satisfação nos olhos do Dr. Swaminathan e aquela tinta negra bem marcada no caderno de notas do científico. Duas horas de voo passando várias vezes polas mesmas zonas aumentavam a felicidade de Rakesh P. Swaminathan, um dos mais relevantes mestres mundiais na ocupação de espaços polas crianças e os jovens, a autoridade que, por encomenda do Director Geral, impulsara primeiro e codificara depois aquele galardão a que tantas cidades no planeta aspiravam como mostra efectiva de equilíbrio, sustentabilidade e qualidade de vida, o “Children’s Place Quality Certificate – UNESCO”, o certificado que garantia que aquele lugar era de qualidade para a vida, para os jogos das pessoas mais novas da comunidade.
De cada 10.000 solicitudes, os seus colaboradores seleccionavam umha para que Swaminathan as visitasse. Ele fazia sempre questão de verificar aquelas que, segundo os informes, podiam ser autênticos modelos. E ali estava, em Tui. Dez anos mais tarde da derradeira conversa com Queco, a quem prometera ir. Desde o ar, apreciara algumhas cousas menos entusiasmantes, é verdade. A veiga do Louro, de que lhe falaram como lugar mágico e de aventura, estava estragada por umha estrada e construções que, depois veu a saber, eram de depuração de águas. Com o seu rigor anotou o facto de que a aventura ali já não era possível e as verificações dos altos índices de contaminação desse Louro e do Minho já não garantiam a prática saudável do banho e a natação; anotou isto tudo, sim, mas o rio ainda oferecia outras potencialidades, apesar daqueles barcos de fortes motores e as motas de água assustadoras que passavam de um lado para outro do rio como reis e rainhas ilegítimos daquele caudal extraordinário. Entusiasmado com o monte, entendia que umha cousa compensava a outra. Percorreu a parte antiga e a deceção acrescentou-se; pouco cuidada, não encontrou quase crianças brincando polas ruas nem nos adros das igrejas; “a baixa natalidade”, cavilou, mas, quando perguntou estranhado a razão por que não havia nem meninhos nem meninhas jogando no espaço que rodeava a catedral, a resposta deixou-no preocupado; esperava que lhe comentassem que as crianças mudaram de hábitos, que a hora não era a ótima (apesar de serem as 18.00 horas de umha tarde calorosa de Maio); que havia um espetáculo em algum lugar.
“Y cuando lluebe, desde la de Galloso a la de Rogelio y, a veces, asta la de Albertito, jugamos con palillos a los barcos por el carrero de las aguas del borde de la Corredera, asta que se van por el desague”. Olhou com toda a sua ternura os erros ortográficos, sabendo que nada disto já existia; mas não riscou a frase; deixou-na assim, naquela fotocópia de um original que estava nos arquivos do CPP. Imaginou dous meninhos vendo os pauzinhos sulcar por meio de obstáculos e perigos (folhas, raminhas, etc.) para chegar à meta; a ternura converteu-se em tristeza quando anotou failed. E voltou outra vez a mirar na sua mente os dous pequenos, com os olhos emocionados postos na humildade do rego da água e os pedaços de pau “como en el Amazonas”, que dizia o texto escolar. Quando telefonou ao CPP confirmárom-lhe a sua suspeita: Queco deixara-lhe um documento autêntico, certamente, mas, piedosamente, falsificara a data, como ele percebia agora na fotocópia: era 1976 a correcta. Conhecia Queco: aquele fora um acto de última esperança…
“Vai à merda”, pensou com o orgulho de que o seu galego melhorara, como para conversar já com o Dr. moçambicano João Freire, responsável do Programa em América, tal como este lhe reptara; “Vai à merda, ignorante”, repetiu-se, agora com as palavras saindo-lhe pola boca, enquanto ouvia, cada vez mais distante, a verborreia do político local em frente, que lhe dizia que vocês os científicos não entendem nada e todo é mui bonito no papel, a ele, que fora presidente da câmara municipal da sua cidade natal na Índia, que agora era visitada por muit@s responsáveis municipais de múltiplos concelhos do mundo, entre os quais aquele político que lhe estava falando, pagada a viagem inútil à custa do dinheiro público, aquele político que ele estava nesse preciso instante imaginando falando e falando no cenário do Teatro Principal, enquanto o edifício caia aos pedaços, até ficar apenas o pano de fundo, e o indivíduo sepultado polas pedras que o seu discurso fizera cair sobre ele; como numha obra de teatro triste, naquele edifício em que Queco não olvidara umha atuação memorável, como se recordavam doutras seu pai, sua mãe, avós, e assim durante cento e cinquenta anos para atrás, anos como túmulos.