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O porco de pé de Risco e Cadaval

Os meios de comunicação diários galegos, ao menos os escritos, salvo erro, derom notícia de que ía ser representado O porco de pé, com estreia em Ourense e turnê posterior por diversas cidades e vilas do país, turnê, aliás, que não consigo entender em termos de programação neste país nosso…

Nesses mesmos meios de comunicação não lim (talvez negligência minha), nengumha crónica valorativa da obra. Pode ser que me tenha passado mas não de modo geral.

Imediata, pois, e triste constatação: estão os meios tão institucionalizados que dão conta das apresentações de cousas, como diário (normalmente institucional ou de parte) do governo, e não da sua materialização e balanço. A pena é única e as causas muitas, sabe-se.

Rápida segunda constatação. Após assistir à encenação da passada quinta-feira, dia 7 de abril, em Compostela, a teatro cheio, há público e público agradecido ao que se lhe oferece se achar bom. As palmas, de sonoridade imponente e totalizadora, ouvirom-se por vários minutos.

Terceira constatação, do meu subjetivo pecúlio: Quico Cadaval é um génio. Esta é umha expressão sumária de que não gosto, mas quer ser, esquematicamente, manifesto de admiração.

Traduzir o romance em peça teatral (com o contributo, sem dúvida certo e certeiro, de Pepe Sendón) como ele fizo acho que só umha mente, umha bagagem de conhecimento(s) e umha sensibilidade como a dele podem fazer. Esta era a minha primeira questão, dúvida, antes de entrar ao teatro. Como irá fazer? Imaginei possibilidades, várias. Quando vim, nos primeiros segundos, o pequeno teatro dentro do teatro, compreendim e entrei no teatro. Magistral, só a cartola de Quico podia ilustrar a cartola de Celidonio. Perdim-me por instantes na memória leve da sentitiva, penetrante, delicada Noite de Reis e trouxem de volta palavras como alquimia, fantasia, fabuloso, misterioso, Cunqueiro.

De quando em vez, olhava para as pessoas técnicas das luzes e som e admirava a gradação, o efeito, o alarde, chamado pola assombrosa adequação ao ritmo e ao cenário. A música que ali está acompanhando o cabarete, o grande espetáculo, a ânsia caída, fala como deve; o desenho cenográfico é o tal, trabalho de ourives do teatro, em que, leio, lavram Carlos Alonso, Piti Sanz, Octavio Mas.

Quico encena com poucos e múltiplos detalhes. Não é paradoxo. A cenografia é a mensagem, ganham diversos sentidos segundo a peça avança e lembras o passo anterior. Recursos que se transmitem comunicando pluralmente e passa assim o artifício sobre a cabeça que apresenta porco ao Celidonio a pano elegante de casaco desta singular força viva, que só tem sentido no plural, da mão do alfaiate Nogueira; ou espalha-se a palha que o Baldomero García junta no início de modos diversos polo cenário; dúzias como estes.

Críticas não tenho. Já aí o gosto adentra em peripécias e matizes que nem venhem ao caso nem devem ter lugar quando a proposta é magistral e o desenvolvimento dumha excelência e dumha eficácia e tão notáveis.

Excéntricas! Só lhes falta o requinte circunflexo deste país, o alargamento do reconhecimento geral, nacional e internacional. Assim como o público deste dias e de anos anteriores iniciou e prossegue em alegre confraria, que trave alheias aberturas que são fendas e proclame fechada entoação a real abertura e dimensão do seu trabalho!

Aquele Risco da Galiza Renascente, aquele avangardista essencialista; aquela inteligência subtil de ânsia totalizadora, vê o espetáculo e exclama, desde o seu caro Além: sim, era isto!

Não admira a exclamação. Quico quer tanto os seus autores que evita, sempre, deixá-los em mal lugar. Mesmo assoma um sorriso benévolo quando ouve um elogio dirigido ao autor que, na realidade, à emenda que o Quico ali colocou devia ir dirigido. Se o texto tinha algo de tosquidade, rudeza, excesso, evidência a mais, lá vem o belo cinzel que pule a expressão, faz emergir do tronco a peça que dentro estava e ainda não fora vista. E segue a pinça de ourives que engasta a pedra no quadro e fá-la brilhar como rubi para ressaltar o grotesco sem que aquele brilho perturbe a vista.

Passa assim em revista este porco de pé aquela realidade presente traspassada pola ditadura de Primo de Rivera, de rádio internacional na confeção e no estilo.

Salienta-se assim a potência da crítica, das classes e grupos sociais, dos prelúdios de cedências e mudanças no ânimo e na ação porque se sucumbe a forças poderosas (diga-o Alveiros, transunto e premonição do Risco de logo da guerra), indivíduos rebeldes mas de quem, na sua individualidde e individualismo, pouco cabe esperar, na sua tertúlia do ‘Novelty’; elites umhas e outras longe das classes populares. Vão passando diversos tipos que ilustram através das suas práticas o mundo e valores em que se movem, de que fogem ou a que aspiram. Um retrato sagaz daquela Galiza sucursalizada, de lazeres e modos de vida daquela burguesia que não é tão difícil perceber nos dias de hoje é oferecido em penetrante ar de sátira.

Saím do teatro com a maravilhosa sensação de que ali ficavam não menos de seis atores e três atrizes, só contando personagens principais. Ali ficavam, imagino-as cansadas, suadas, absolutamente satisfeitas, Evaristo Calvo, Patrícia Vázquez, Vítor Mosqueira. Com elas, certamente, Quico tem meia viagem feita. São excecionais, levam-nos para os anos vinte desde este 2022 sem anestesia. Como tantas vezes nos tenhem transportado sem deixar de contar, de comunicar desde o hoje. Há algo de conto à mesa de café em todo esse trabalho, de “vou contar-che umha história”, “imagina que” e já as personagens começarom a mover-se, a andar, a transmutar-se, a diversificar-se sem contaminar-se, a ser o que representam sem deixar de ser quem são. Baixam das suas personagens ou a elas sobem com umha elegância sublime. O pacote cómico da revista, do teatro de feira, da representação rural de entrudo também constituído nelas três, por elas três explicado em verbo e carne. Agora, sim, agora cobram o seu pleno sentido alquimia, Cunqueiro, fantasia, mistério, fabuloso, Galiza também e sobretudo, nesta reivindicação permanente de Quico da nossa presença no concerto e desconcerto do mundo. Num cosmopolitismo irrefutável nascido do estudo desde aqui.

Quero imaginar Cadaval e a sua trupe em carruagem de sochantre, falando e atuando em faculdades, sim, mas igualmente em escolas e oficinas, fábricas também sem demagogia, para ir relatando casos e espécies que ajudam a melhor ver, pensar e fruir.

Acho que, desde há anos, assisto às encenações do Quico Cadaval, para, além de desfrutar, sair com o prazer íntimo de constatar que o génio continua, dum orgulho parvo mas deliciosamente infantil, de que o temos entre nós (dizer que é nosso seria soberba e apropriação indébita), de que o encontraremos num café, num teatro, por algumha rua, e alguém poderá gritar “Adeus, Cadaval!”, e prosseguir caminho com sorriso leve, da satisfação íntima de que aí vai essa presença que nos lembra sermos pessoas de fortuna; que faz presente que, na volta de qualquer esquina espera outra obra, sair da casa e dar com o aviso de nova representação. Aí!, “esses sim sabemos que são!” Cadavais, Evaristos, Patrícias, Vítores que aí venhem saídos de cartola mágica ao nosso alcance, em difícil ofício de funambulistas, dando circo do mundo e lupa com que olhá-lo. Bravo, vamos que pode ainda haver bilhetes! Benção!

Sobre o autor

Elias J. Torres Feijó

Tenta trabalhar coletivamente e acha que o associativismo é a base fundamental do bom funcionamento social e comunitário. A educação nos Tempos Livres é um desses espaços que considera vitais. Profissionalmente, é professor de Literatura, em origem, e, mais, na atualidade, de Cultura.

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Xoán Carlos Carreira Pérez

Doutor engenheiro agrónomo, professor de Engenharia Agroflorestal na Universidade de Santiago de Compostela. Autor de vários livros e artigos científicos, tem colaborado em diversos meios de comunicação, como A Nosa Terra, El Progreso, Vieiros e Praza Pública.

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Polemista e tamén escritor. Autor do ensaio "A Causa das Mulleres". A quen lle interese lelo pode solicitalo neste blog e enviaráselle ao enderezo correspondente sen custo ningún do exemplar nin do transporte.

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Espaço público, Cultura, Política, Comunidade, Território, Pessoas… Viva Cerzeda é a comemoração, para nós, da amizade, do bom humor sempre que possível e de tentar contribuir com algumhas ideias e opiniões para entender(mos) e atuar(mos) do melhor modo o mundo… É ambicioso mas é-che o que há… e para mais não damos…

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