Há bastante hábito de falsos debates, que —mais do que resolver um eventual problema— servem para luzir interesses ou galas das pessoas intervenientes.
O assunto do turismo é um deles. Colocam-se as cousas em termos maximalistas: turismo, sumariamente sim, porque é riqueza e a gente tem que ter meios para viver; turismo não porque, definitivamente, é intrinsecamente tóxico e afeta sempre de modo negativo a gente nos seus modos de vida. Já definir ‘turismo’ e ‘gente’ não é tarefa fácil. Ao lado desse simplismo habita outro: nem tanto nem tão pouco, que é não dizer nada, ao menos a priori, e que beneficia da ideia de que o bom vive nos meios e que os extremos devem evitar-se, do mesmo modo que o maximalismo primeiro bebe da enunciação do pragmatismo extrativo e do implícito combate ao que já tem garantido a sua vida à margem do turismo e o segundo dum refinado ideologismo para que se vejam as suas galas impolutas, ainda que acabe de chegar dumha viagem inevitavelmente turística e disfarce a sujeira com panos de mercado local.
Inevitável é a palavra chave como ponto de partida; deslocar-se pode, mesmo que o objetivo não seja turístico, comportar umha ação turística ou com parangonagem no turismo; as mais das vezes.
É estéril discutir sobre umha realidade incontornavelmente, ao menos no “para todo o sempre” que o nosso olhar alcança, por mais alargado e longo que ele seja.
(Pessoalmente, sou das que opina que a componente tóxica é quase intrínseca ao ato turístico; e, também, que, simplesmente, deslocar-se a comprar o pão à padaria da nossa rua também o é: pense-se, apenas, nas despesas de energia, mantenimento e até relação económica com base capitalista que essa simples ação implica e evidencia a sua complexidade relacional)
O esforço, então, deve ir dirigido a incidir em como viajamos, em como visitamos e queremos visitar e, fundamental, em como queremos ser visitados.
Como visitantes, talvez seja bom guia o que Kaváfis desenhou —para usos nem tão distantes, na sua alegoria, das atitudes que reclamamos bondosas para o turismo— no seu “Ítaca”, que há anos reutilizei para definir essa atitude no que denominei “viajante Ítaca”, “Ithaca traveller”.
Mas, neste texto, quero focar o fator-chave para isto tudo: centrar-se na comunidade local, até, aproveitamento colateral, polo efeito bumerangue que a sua atitude poda ter em quem viaja, seja visitante ou visitada.
Portanto, a premissa maior para um turismo que seja aliado das comunidades locais e pensá-lo desde estas, desde o bem-estar das comunidades locais. Certamente, enunciar isto é enfrentar complexidades e lados difíceis de substanciar; “bem-estar”? “Comunidades locais”?
Quiçá um dos melhores guias para definir esse bem-estar seja pensar em caraterizar tudo aquilo que fizo que a comunidade local chegasse, ao longo dos tempos, a ser o que na atualidade é. E, dentro desse devir, tomar (sobretudo a administração pública, mas também a sociedade civil) medidas que fagam que essa comunidade e as suas diversas (sub-)comunidades (há muitas, diversas e muitas vezes compartilhadas e por vezes excluídas) se sintam incluídas e integradas e com recursos bastantes para a sua vida económica, social e cultural. Cabe aí considerar o que as trouxo até essa atualidade em termos das diversas identidades em jogo e uso, da produção de bens de todo o tipo, da sua distribuição e comercialização (e, no caso, importação), dos usos e consumos dos espaços públicos e da configuração do território e daquilo que tem valor para os diversos setores, das suas vontades de adequação a todos eles, dos recursos utilizados para isso, tudo examinado à luz da sustentabilidade e da garantia de continuidade ambiental da comunidade.
O turismo, como fenómeno de massas, é recente na história da humanidade. Determinar o que essas comunidades eram, como integram e integrarom os novos fenómenos do mundo e, na linha que historicamente desenharom, a sua vida coletiva é tarefa importante para saber o que fazer e por onde caminhar. Cada reformulação que o turismo implique deve examinar-se a essa luz suprema. E convém fomentar aquilo que otimize o que a comunidade construiu ou integrou como bom e, ao mesmo tempo, combater o que for contra essa direção. Mas sem esquecer que a comunidade deve expressar-se no seu conjunto e que deve ter um alargado grau de soberania, informada…!
Talvez a informação seja um segundo elemento chave: as consequências das decisões, os interesses em jogo, as alternativas, etc., devem (já agora, este é o espaço fulcral da investigação com financiamento público nesta área e esse deve ser o destino central do investimento público) constituir umha prévia e sólida informação. A atitude, no melhor dos casos, de resposta —se ela existir— e não de planificação é umha das principais carências —muitas vezes deliberadas— da administração pública, aliada do economicismo e o lucro —com frequência extrativo— no curto prazo. É do máximo interesse, antropologicamente, notar como muitas coletividades humanas tomam decisões sem pensar na sustentabilidade além da sua própria geração ou, então, pensando em legar recursos à que lhe segue, sem mais norte que o que entendem benefício económico exclusivamente para as pessoas suas dependentes.
Ora, a informação tem, aliás, um vetor radicalmente decisivo e pouco atendido: o discurso, a narrativa com que aparece a comunidade —ou algum dos seus bens— no exterior e que emana (e esta deve ser a identificação básica e basilar) de agentes da própria comunidade, muitas vezes insurgidas como porta-vozes dela toda.
Sim, está bem demonstrado que —exceto comunidades não interessadas ou com recursos precários ou inexistentes— é desde a comunidade local que se emitem os sinais de oferta e modo de visita, os quais, depois —mais ou menos esquematizados— são usados polos mui diversos agentes e canais de transmissão e publicidade e determinam as pessoas visitantes, no seu perfil e tipo. E isso está decisivamente condicionado e alimentado polo discurso que a oferta do local visitado significa. Um modo de acesso, um edifício, um comércio, um traçado, umha atitude (isto especialmente), etc., oferecidos à turista são narrativas fundamentais e concebidas como essenciais (de essência) do local visitado, são a expressão para a visitante do que a cidade é —com as suas ocultações e exageros—, que se culminam na vontade e procura gerais do ‘autêntico’ e do ‘mais destacado’ por parte de quem visita.
Não é o dinheiro, não o capital cultural legítimo nem o nível de estudos, o que determina o investimento e o tipo de uso e consumo dos visitantes. É o discurso, a narrativa que gera nas pessoas forâneas determinadas ideias e visões, imagens que determinam a decisão de viajar —ou não— e como, e que depois são procuradas por quem visita.
(Sobre o caso de Santiago de Compostela, na Rede Galabra temos tantas amostras disto e com dados que evidenciam linearidades entre discursos e práticas que quase resultam assustadoras; e, deve dizer-se, quanto mais procura da comunidade local, a visita resulta mais benéfica para os interesses locais em sentido alargado, económicos, sociais, culturais, ambientais…; as atitudes, a práxis são outras).
Sim, o que sejam Barcelona, Veneza, Maputo ou a floresta amazônica dependem dessas narrativas. Claro que há um princípio (neo-)colonialista nisso tudo, mas, por exemplo, nos dous casos primeiros assentam em discursos auto-gerados e neles mais que nos outros, de tal modo que a comunidade local —que inclui sociedade civil e administração pública, como também entidades setoriais e comercializadoras— pode reorientá-los, pode dizer —e combater por— como deseja ser visitada: ? quando, quanto (e quantas), onde (atenção a essa ideia de diversificar o turismo e os seus atrativos; outra cousa bem diferente é a interseção local-visitante compensada e assumível; e até itacamente desejada) para quê, etc.
Essa é lição que convém apreender, acho, porque tem a ver com o que modernamente se denomina apoderamento dos setores comunitários, que envolve também alianças, estratégias, entendimentos e assunção de (auto-)responsabilidades.Importa que os parâmetros e indicadores derivados dos fatores que antes enunciei sejam decisivos e comecem a substituir os sarcasmos e cinismos que se derivam da eventual geração de riqueza económica (para quem?) ou das capacidades de carga medidas em metros quadrados por visitante, como se nisso se estribasse o limite do bem-estar. Dito de modo liso: a cousa está (também) nas mãos da gente local.
E nessa reorientação do discurso local, a comunidade recetora pode encontrar aliança e cumplicidade na visitante: se esta souber o que dela se espera, o que interessa à comunidade local , o que ela valora e o que ela rejeita, então o seu comportamento poderá tentar adequar-se a esse conhecimento.
Portanto, há que incidir no discurso: tanto no que é transmitido —por tão diversas vias— à potencial visitante como naquele com que esta se encontra à sua chegada (especialmente sabendo que, como temos mostrado no caso compostelano, parte importante de quem vem está disposta a modificar a sua visita, o que é umha boa notícia). Se a sociedade civil se comportar, ativa, nessa direção, ela deixa de ser invisível para a visitante e evita a consequência de práticas —consciente ou inconscientemente— predatórias, de modo que o turismo poderá ser realmente aliado dos seus interesses.
Pensar desde a comunidade local é a melhor pedagogia para as pessoas próprias e as alheias. É igualmente o modo de dar resposta, se não a todas, a múltiplas perguntas: desde as relacionadas, por exemplo com a adaptação ou construção de vivendas turísticas ou hotéis, à oferta gastronómica ou de atividades culturais, passando no caminho pola reconversão ou não de negócios e ofertas comerciais… ou sobre usos e manutenções legítimos e ilegítimos de propiedades privadas…
Deve orientar-se trabalho a procurar que a atividade turística não perturbe a vida da gente. E a conseguir que não perturbe os seus bens básicos: vivenda, alimentação, saúde, educação, lazer, ambiente, recursos básicos e de proximidade, espaço público… E que, no que tenha de convívio, este seja integrador sobre a base do interesse local.
Entendo que é missão das cientistas que dedicam o seu trabalho a analisar estes fenómenos trabalhar para as comunidades locais; para que elas, a sua sociedade civil, as suas gentes em geral, estejam informadas e que as suas administradoras públicas conheçam e prestem contas sobre a base do bem-estar comunitário. Só assim as demandas poderão ser eficazes, de bom governo e boa conduta, e poderá PODERÃO reduzir-se ou até acabar os diversos modos de conflito social-civil que um determinado turismo —em volume e atitude— provoca, não apenas com a comunidade local mas no seio da comunidade local. E deve haver umha consideração holística, global, do assunto. Não é, por exemplo, cousa só de gentrificações, mas de especulação com todos os bens da comunidade e contra umha comunidade, que alicerçou a razão de ser do objeto especulativo. É tarefa portical do trabalho investigador nestes âmbitos —como, em geral, de todos— saber de que lado esse trabalho está e de que lado estar, com a independência de juízo, o rigor e o compromisso social devidos.
Este artigo publica-se simultaneamente em vivacerzeda e em redegalabra.org